ZUCA
Zuca, talvez você nunca tenha imaginado que fosse capaz de despertar com tanta intensidade esta dor tão imensa e irremediável que é a saudade que sinto de você. (Depois sentirei dos outros, mas, agora, é de você.)
Você, tão meigo, tão doce, tão amoroso – e tão frágil, tão impotente!...
Você me lembra todo ser humano que, por mais forte e feroz que consiga se tornar, é, na verdade, o simples caniço de Pascal, e nem sempre pensante.
Zuca, meu caniço gentil até nos humildes pensamentos.
Lembro de você adolescente, dormindo no assoalho em colchão emprestado, longe da sua casa, tentando encontrar um caminho possível para a sua vida.
-- Zuca, como você vai encontrar trabalho se você não tem nem diploma do curso primário? Por quê?
-- Ora, fui reprovado por faltas, porque ia jogar bola com meu pai. O coitado não consegue acreditar que eu não posso ser jogador de futebol com meus “gambitos” e costelas. Sabe como me chamam no campo? Gafanhoto! Não seria melhor “louva-a-deus”? Ele não é mais magrinho, como eu? Mas meu pai não tem culpa, não, porque eu ia ser reprovado mesmo. Não sei como vocês conseguem estudar tanto! Eu não entendo nada de nada. Mas eu sei de gente que está ganhando muito bem e nunca estudou. É impossível que eu não encontre alguma coisa, não acha?
-- É, acho. Mas como você ia jogar futebol com seu pai? E o trabalho dele?
-- Ah! Ah! Ah! Ele é muito azarado! Está desempregado por causa de uma blusa de lã colorida, muito desenhada, que ele ganhou de presente.
-- Como assim?
-- Pois é, o pessoal da fábrica fez greve e arrastaram meu pai para um comício. Ele acabou ficando bem na frente quando um jornal tirou fotografia. Não deu para reconhecer ninguém – só meu pai, por causa do desenho da blusa. Foi despedido. Agora dizem que ele é comunista e ninguém quer dar emprego.
-- Como é que a sua família está se arrumando?
-- A Lola já tem doze anos e é boa manicure. As freguesas são pobres, mas ela ganha uns trocados. Minha mãe está bordando meias de homens para uma fábrica. Trabalha em casa, mas tem que carregar cada trouxa! Agora um amigo convidou meu pai para formar mesa de carteado... e nisso ele é bom. Quando ele consegue não jogar o seu, até que está levando algum para casa. Só espero que ele não vá preso, porque o lugar é clandestino. Se eu não conseguir emprego logo, meu pai vai me levar com ele. Até que jogo bem. A Yolanda e a Vilma ainda são muito pequenas, mas Deus não há de deixar faltar comida para nós. Na roupa a gente dá um jeito. Só que parece que ganhar roupa dá azar. Ah! Ah! Ah!
Zuca, você e seu pai, João, mal conseguiam levar para casa um pouco do dinheiro que ganhavam para “formar a mesa”, porque não resistiam à tentação de jogar “o seu”. Mas algum sempre sobrava e a família viveu até que todos se equilibraram em algum trabalho: até irem morrendo um a um.
Seu pai e sua mãe, Aurora, eram primos e diabéticos – a sentença de todos vocês já era conhecida quando nasceram.
Primeiro morreu seu pai, depois a Yolanda, muito jovem. Depois morreu você, o xodó da família. Mas, antes, você demonstrou como era possível ser tão frágil e fazer as pessoas se sentirem tão bem perto de você.
Na verdade, todos vocês viviam doentes, mas a doença até que os ajudava a viver. Dava a cada dia o seu objetivo: ir ao médico amigo ou ao pronto-socorro, tomar remédio, consolarem-se uns aos outros...
Até que um dia, deitado à força, você chorou para mim:
-- Na Santa Casa fizeram uma junta médica! Estou desenganado!
-- Mas Zuca! O que é uma junta médica hoje? Você tem diversas doenças, além das suas veias entupidas. Cada médico tem uma especialidade. É preciso que diversos médicos, cada qual especialista em alguma coisa, reúnam-se para chegarem a um diagnóstico, entenderem em conjunto o que você tem, para darem remédios adequados. O que quer dizer desenganado? Que você não tem cura? Ora, a Vilma tem asma e não tem cura, eu sofro do sistema nervoso (nem sei bem o que é isso) e não tenho cura. Cada um de nós tem alguma doença que não tem cura e continuamos a lutar para abrir os olhos todas as manhãs. Mas estamos todos desenganados! Um dia não vamos morrer, mesmo? Ora, seu malandro, você queria ficar para semente?
-- Ah! Ah! Ah!
Você consegue continuar vivendo com a dor nas pernas? É suportável? Dá para ficar sentado à mesa de jogo?
-- Dar... dá. Suporto, sim. Mas... (a mão passando nervosa pelo rosto, pelos cabelos) é que eu fiz a Nossa Senhora de Fátima a promessa de não jogar mais...
-- Ah, sei. E agora você fica imaginando como vai ser a vida. Mas você é malandro, mesmo. Essa promessa não vale! Como é que alguém pode prometer não trabalhar mais? Pois jogar não é o seu trabalho? Dizem até que, logo, logo, quando reabrirem os cassinos, você já vai ter emprego garantido! Essa promessa não vale, Zuca. Agora levante e venha tomar lanchinho conosco.
Sabe, Zuca, que eu não me lembro de ter visto você outra vez, porque sempre estava dormindo quando íamos em visita, pois a noite lá fora era o seu lugar quando estava acordado.
Até que você morreu. De repente.
Medo, onde está a sua vitória?
Depois, logo depois, morreu a Vilma e sua mãe disse que você veio buscá-la, porque não sabia ficar sozinho, nem no céu.
Depois morreu sua mãe e, por fim, a Lola morreu. Acredito que ela achou que ninguém mais precisava dela e ela não precisava mais suportar ausências.
Em um ano, como a nossa vida se esvaziou de amores!
Fizemos nascer outros amores, porque aqueles que ficaram precisavam de reforços para que todos possamos cumprir o nosso tempo sobre a terra.
Mas, Zuca, não posso compreender como não exista a palavra “saudade” em outras línguas, porque essa dor de ausência tão enorme e irremediável só pode ser suportada se tiver um nome.
Saudade, Zuca.
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ZS – SP/21/07/2004