segunda-feira, agosto 25, 2008

UM CONTO...

UM CONTO... PORQUE QUERO QUE SEJA UM CONTO

Mãe, quero falar com você, mas sem que minhas palavras se percam no espaço. Para ser assim, eu vou lhe escrever na forma de um conto. Vou lhe escrever um conto. Por isso, assim começo – porque é assim que se começam contos, desde sempre:
Mãe, era uma vez...
Era uma vez uma filha que sentiu uma saudade imensa de sua mãe e teve que parar de chorar para poder escrever. (E foi muito bom assim.)
Mas eu lhe conto, minha mãe, que uma filha (esta filha) foi enxugar a louça com um pano que pratos que você fez. E quando ela percebeu, não estava enxugando, mas acariciando o prato com o pano bordado de ponto haste e bainha de crochê. Nenhuma obra de arte, mas um trabalho de sua mão que nem ao menos poderá guiar as de suas bisnetas para que elas o reproduzam. Como é comovente um pano de prato bordado! E de se pensar que eu dei diversos para desocupar espaço na gaveta! O que acontecerá com aqueles que ainda tenho e não vou por em uso porque quero guardar como lembrança? Então eu me lembro como foi desocupar seus armários e gavetas quando você morreu.
(Que farão com minhas coisas quando chegar a minha vez – que nem longe deve estar?)
Mas, minha mãe, será que estou falando com você ou estou falando sozinha? Uns dizem uma coisa, outros dizem outra. Não costumo visitar seu túmulo, a não ser por necessidade administrativa. Se você continua existindo de alguma forma, é

aterrorizante imaginar que você esteja lá. Não quero acreditar nisso. Mas tenho a impressão de ser criticada por não lhe levar flores.
Tenho uma idéia: podemos marcar um encontro no seu túmulo e conversar alguns minutos – só para agradar os outros.
Está vendo, mãe, esta filha continua perdida no mundo do mistério da morte. Por isso continua chorando depois de tanto tempo.
Mas para isto ser um conto, tenho que contar alguma coisa: já lhe falei da minha saudade, da minha angústia diante do mistério. Falta contar algum fato objetivo, acho.
Pois bem, conto-lhe o que aconteceu com o homem que a senhora amou aos 89 anos: ele ficou viúvo.Vocês poderiam ter se casado e continuar morando, talvez, aqui em casa. Nesta casa tão grande e agora tão vazia. Tenho lutado para que ela fique com vida: visita dos filhos, netos... que falta fazem amigos que a gente não soube cultivar. Posso falar um pouco de solidão, também.
Mãe, posso continuar contando dos aniversários, dos meus poucos passeios, das conversas a seu respeito.
Mas acho que isto chega para um despretensioso conto. O resto eu vou rezar.
E não fomos felizes para sempre.
E... talvez... não seremos infelizes para sempre.

ZSF/SP-28-08-2006