segunda-feira, julho 14, 2008

OLHA A MENINA!

OLHA A MENINA!


Olha a menina. Olha! Olha a menina!
Por que não recolheram o lixo desse canto do quintal?
E agora, olha a menina ajoelhada bem no meio do lixo!
Como ela está tão quieta!
Ora, ela está de mãos postas, como a rezar.
Junto aos joelhos, há uma caixinha de madeira rústica, medindo dois palmos de sua pequena mão. Sobre a caixinha, um retalho de renda bege quase a cobri-la. Bem no centro, uma rosa cor-de-rosa murcha, sem haste. Formando um colar em torno da rosa, pérolas de papel prateado bem picado e emboladinho.
Olha a menina...
Ela esteve na igreja católica do bairro, onde foi rezada missa de sétimo dia pela alma de sua avó. Diziam-lhe que a avó adorava essa neta. A menina não se lembra do carinho da avó, doente por tanto tempo. A menina não se lembra de carinho. Mas pensa na beleza do altar, tão mais bonito do que a sua casa. E vidros coloridos nas janelas altas?! (“Vi-trais”) O silêncio, o tremular de velas... Tanta beleza pela alma da avó. Para a avó.
Não, menina! Esse altar, esses vitrais cheios de imagens, esse cheiro de incenso – tudo isso é pecado. (“Pe-ca-do? Coisa feia?!”) A vovó está dormindo até a ressurreição. É pecado rezar por uma alma que não existe. (“Ressurreição? Quando é?”) Então a menina vai ver de novo a sua avó? Sim. Um dia, mas se não rezar pela alma, porque ela não existe fora do corpo. (“Como?”)
Mas o que fazer com tanta beleza junto aos seus joelhos?
E se rezar um pouquinho só? (Que o pai não a veja!)
Olha a menina! Tire-a do lixo! Já!
Mas com muito, muito cuidado. Com toda a suavidade do mundo.
Não lhe diga que está ajoelhada sobre o lixo que pode lhe fazer mal.
Apenas tire-a daí, suavemente, pedindo-lhe a mãozinha tenra para ajudá-la a levantar-se. Delicadamente.
Cuidado! Cuidado! Não apague a beleza que ela está guardando e transformando na memória. Não lhe mostre, ainda, o contraste de rosas frescas e botões recém-nascidos. Depois ela vai poder amá-los sem trair a rosa do seu altar.
Aonde quer que vá, há de encontrar lixo sem fim – que quando ela for cientista ou quando for artista saberá purificar. Quanto à alma... É capaz que ela encontre a esperança, sim.
Cuidado! Essa menina merece uma chance – como todas as meninas que se ajoelham sobre o piso sujo da consciência de todos nós.
A menina merece uma chance – e ela a terá.
Olha! Olha a menina!




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Zuleica Seabra Ferrari – SP/ 06/07/2004