segunda-feira, julho 28, 2008

A SEREIAZINHA

A SEREIAZINHA



Não uso meia fina de mulher. Não uso.
Não podem perceber? Vejam que escamas cobrem minhas pernas e destroem qualquer tecido gentil e impedem carícias as mais inocentes. Machucam.
Eu ando. Mas as pernas doem. Só posso dançar na ponta dos dedos.
Minha voz é um grasnido. Prefiro ficar muda. Nem saberia dizer tudo que carrego por dentro.
Por causa dele. Apenas. Talvez.
Eu fui avisada: somos de elementos diferentes. Não sobreviveríamos juntos. Só se ele me amasse. Ou se ele me escolhesse para companheira e fizéssemos amor como os humanos.
Sou quase humana: escamas... só nas pernas.
E elas desapareceriam se eu conseguisse uma alma.
E, se ele me beijasse, libertaria minha voz.
Mas ele ama quem ele escolheu.
É verdade que tenho uma opção: se eu os matasse – ou matasse esse amor – eu poderia ser gente de verdade. E ele seria meu – para sempre – prisioneiro afetivo: nunca mais poderia escolher.
Essa opção vem de uma carta-punhal que me entregaram para que fosse eu a mergulhá-la no sangue de ambos, sem que outros sujassem as mãos.
O que faço com a carta flamejante? Migalhas incendidas para alimentar o vento. Lá se vão!
Que se matem sem mim! Ou que sejam felizes nas horas do não sei!
Vou continuar como estou, vou ser espuma, vou ser filha do ar. E depois de mil anos terei alma e poderei voltar aos meus sonhos.
Com escamas? Sem voz?
Já não me importo mais.
Pedirei ao Infinito que me permita ajudá-lo a tecer almas e acender estrelas.
Talvez uma delas beije minha testa e nunca mais serei só.
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Zuleica Seabra Ferrari