segunda-feira, junho 23, 2008

PELA ÚLTIMA VEZ

“Pela última vez, a última voz levada pelo vento...”

(Vovô Décio está muito quieto hoje. Triste ou zangado? É difícil ler um rosto semi-paralisado. Vou conversar um pouco com ele ... Acho que me trouxe um dos seus livros autografados. Não larga aquela pasta desde que cheguei. Mais tarde... ainda há tanto que fazer... Vou chegar tarde em casa outra vez e não vou ter dúvida em ler no rosto do Caio: será zanga, mesmo. Helenice também vai reclamar porque não terminei a bainha da saia... Droga. Estes velhos ainda compreendo que se irritem, mas meu pessoal está chorando de barriga cheia.)

“A amada se esquiva para não enfrentar os frutos da sua traição. Não há pressa. Morta a ilusão, tenho agora todo o tempo do mundo, porque me falta apenas um último gesto. Mas quero, apenas, pela última vez, ouvir a sua
voz”.


- Não levante a voz, Paulo. Não fale assim com seu avô. Você não percebe que ele não pode compreender totalmente o que você diz, o que ele fez, a minha atitude? Não fale assim. Ele não me arrancou nenhum pedaço. O que ele podia fazer além de roubar um pouco de contato humano? Você mesmo disse que sou parecida com sua avó quando era moça!

“Deixe que eu tome suas mão e sinta a força do seu peito, para reencontrar meus fantasmas sem temores. Será que vou saber suportar o que ainda me cabe na partilha dos sofrimentos e da solidão? Minha amada, tenho saudade da curva do seu seio e do calor do seu ventre. É pouco beijar seus lábios: aguça minha fome por lençóis ásperos e silêncios forçados porque é preciso não gritar de amor. É pouco. É muito pouco o dia de hoje para quem tem tão poucos amanhãs.”

- Velho indecente! Pensa que não vi o senhor agarrando minha mulher? Poesias eróticas, não é? Safadezas dissimuladas, isso sim. Pensa que eu não sei que o senhor tentou dormir até com minha mãe? A Idalina me contou tudo. Você a detesta porque ela é sua testemunha, não é? Testemunha de sua covardia. É cômodo o incesto, não? Filhinha trancada em casa, para não se expor a concorrentes mais moços e melhores do que o senhor! Sei muito bem porque a vovó exigiu que minha mãe fosse para o internato. Casa de Repouso! Repouso para mim que não o quero perto da minha mulher!



“Amada, não me expulse do seu leito. Bendito é o fruto de seu ventre – o que já temos e o que possamos vir a ter. Ainda que isto a perturbe e nos magoe. Não compreendo... Nossa filha tão meiga, sensível, apaixonada... Não se sente tocada pelo seu amor? Eu me lembro da sua mágoa em não poder niná-la quando era um bebezinho faminto. Idalina cuidou dela, roubou o afeto que deveria ser seu. Invejosa! Mentirosa! Instigou sua filha contra você, mas não foi capaz de ocupar de verdade o seu lugar de mãe. Eu fui pai e mãe de Berenice e ela não quis me repartir com você. Ciúmes! Agressões! Não é justo! Berenice no internato!... Como você quiser. Vou ser seu marido e sua cria. Você vai me ninar e vai ser minha mãe, minha mulher, minha filha. Todos os símbolos do Universo vou encontrar no calor do seu corpo e vou ficar completo. Quero ser tudo para você.”

- Papai, não quero ir para o internato. Idalina me disse que a mamãe exigiu isso porque ando agressiva e porque ela tem ciúmes. Ciúmes de mim, pai? Ela não tem tudo nesta casa? Tudo não é dela – até você? Quando ela estava mais doente, você lia poesias comigo, estudava comigo, jogava e brincava. Agora tudo acabou por causa dela. Mas eu prometo não brigar mais. Prometo me comportar. Como é que eu vou viver longe de você, da Idalina, dos meus cachorros, das minhas plantas? Eu fujo. Juro que eu fujo e me entrego ao primeiro cafajeste que encontrar na rua. Vou desonrá-los porque para mim é desonra vocês não me quererem mais aqui. Nunca mais vou chamá-la de mãe. Ela me trouxe ao mundo sem eu pedir e tudo que pedi ela não me deu ... e ainda me tira de você. Por que me acusam de um ciúme absurdo, quando minha revolta é tão justa?


- Vovô, Não leve a mal o seu neto. Ele é muito ciumento e o senhor ainda é um homem bonito. Ninguém diria que tem 60 anos, quanto mais oitenta. Eu o admiro muito por não deixar de lutar, mesmo depois do derrame. Está difícil, não é ? Ajudaria se tentasse conversar comigo também. Só com a fonoaudióloga é pouco. Mas respeito sua vaidade e conversaremos depois Temos muito tempo... Até suas mãos estão ficando fortes outra vez. Percebi outro dia... É sim. O senhor ainda vai casar-se outra vez para não precisar roubar carinho. Quem sabe aquela enfermeira bonitinha, parecida com a vovó? Não é bom o homem estar sozinho.

“Amada que me traiu partindo primeiro. Você podia adivinhar a dor da minha solidão? Eu a procuro em todas as mulheres, desde aquele dia. Mas hoje, cada um dos meus lentos passos me afasta para sempre de você, como afastei o fruto do seu ventre, por amor a você. Berenice! Quanto nos magoou com sua gravidez e sua morte precoce! “Colheitas nem maduras! ” Para você o consolo de nosso neto e para mim o ódio dele, que pensa que conhece meu coração. Ah, Idalina! Seu veneno atravessa gerações... Amada, haveria algum meio de ajudá-la? A você, a quem eu daria minha vida e cuja morte apressei sem querer?”


- Vovô Décio, seja bem-vindo! O senhor vai ajudar muita gente com sua presença aqui. Com sua coragem, sua luta pela saúde e pela vida, o senhor vai servir de exemplo a uma porção de gente mais nova e que já quer desistir. Eu sei que se o senhor não fala é apenas por vaidade. Mas eu sou enfermeira. Falar comigo é o mesmo que falar com a fonoaudióloga. Eu não crítico as falhas: apenas admiro sua conquista de cada dia. Vamos ter muito tempo, não é? Ainda vamos conversar muito. Quero ler suas poesias. Sua neta vai publicá-las, sabe? E vai fazer uma festa em casa para o senhor autografar livros para seus amigos. Sua letra já está firme de novo, eu sei. Suas mãos são fortes...


“Amada, quem ainda se lembra da cor de meus olhos e do calor das minhas mãos? Você estremecia. Onde posso reencontrar o som da sua voz? Não importam as palavras: quero apenas o som... o som... O que você dizia ? Não importa. Você me amava. Volta. Fique comigo amor. Sou de novo menino com medo do escuro e não há ninguém a quem possa confessar. Venha cobrir-me à noite, insistir para que eu coma, escolher minha roupa mais elegante e depois chorar de ciúmes. Eu quero seus ciúmes mais delirantes para que transborde a medida do meu valor.”


(Gostaria que todos aqui fossem como vovô Décio. Ele é tão altivo, orgulhoso, cuida de si próprio com tanta dignidade. Outros são tão difíceis! Difíceis para o banho, para a comida, para se vestir. Parece que apenas a raiva os mantém vivos. A neta disse que ele ainda é homem e que eu preciso me cuidar porque sou parecida com a mulher dele. Ora, até que um flertezinho pode ser bom para ele. Ajuda a lutar. Se todos morrerem logo, como fica a nossa fama? Manter o freguês vivo para manter o emprego!.)

- Vovô Décio, é hoje a grande noite! Como o senhor está bonito com essa roupa nova! Deixe arrumar a gravata. Nunca fui a uma noite de autógrafos. Precisa de gravata? Até que é bom que o senhor se vista assim, para variar um pouco. Mas nada de traição, ou não caso com o senhor depois do meu divórcio. Acho que estou com ciúmes porque não vou vigiá-lo esta noite.


“Eu quero seus ciúmes mais delirantes... para que eu volte a amar espelhos. Amada, o riso em sua boca compensa os destroços do meu rosto”...

- Que história é essa de perguntar porque vim buscá-la? Você é minha mulher e fica comigo cada vez menos tempo! Por que você demorou tanto outra vez? Não existe outra enfermeira para cuidar daquele velho? Não falo baixo coisa nenhuma. Só sua boca pode tampar a minha.

(Vovô Décio está olhando para cá. Ah, meu Deus! Não queria magoá-lo. Por que Caio tinha que me beijar aqui na frente de todo mundo? Bom, é melhor que seja assim. Acho que levei as coisas um pouco longe. Vovô Décio não está assim tão incapacitado e pode estar levando a sério. É melhor deixar clara a situação e beijar meu marido para o bem de ambos e para o meu sossego.)

“Esta é a noite mais longa, quando eu não quero a luz e tenho de aceitá-la. Quando não quero ninguém e sou obrigado a tantos abraços. Meu quarto pela última vez! Meu criado-mudo! Mudo! Mudo! Ninguém tocou em você, como eu gostaria que não tivessem tocado de novo na minha alma! Minha alma! Minha arma! Sim, minha arma.”


- Vovô Décio, é verdade que o senhor vai se casar outra vez?

‘Minha amada vestida de noiva, caminhando para mim ao som do órgão. Flores, luzes, sorrisos que eu perdi... Eu me lembro ou sonhei? Quanta gente para rir do meu último sonho e participar do meu último pesadelo.”

Notícia do jornal Folha de São Paulo – ANCIÃO ATIROU NA ENFERMEIRA. O ancião X , de 80 anos, assassinou com três tiros a enfermeira Y, de 42 anos , casada , e em seguida disparou a arma, um revolver calibre 38, apontado contra seu próprio coração, tendo morte instantânea. Os motivos do crime, seguido de suicídio, ainda não foram apurados pela polícia. A enfermeira prestava serviços em uma Casa de Repouso, na Av. O, que abriga idosos, entre os quais estava o ancião.

ZSF/